Bonecos ajudam japonesa a sobreviver em ilha quase inabitada

Japonesa encontrou uma forma surpreendente de combater a solidão

20/09/2018

Eu começara a explorar o coração de Shikoku, a menor e menos visitada das quatro principais ilhas do Japão. Dirigia tenso com meu carro alugado pela estrada de mão única por um vale montanhoso em direção a uma famosa ponte de ramos de videira. Segui por um vilarejo aparentemente deserto com uma dúzia de casas empoleiradas precariamente em palafitas de metal sobre um rio, virei à esquina e vi à distância três figuras apoiadas contra um poste de eletricidade.

Eles usavam botas de borracha, calças e blusões feitos de um tecido rústico e luvas brancas. Capacetes de beisebol cobriam suas cabeças. Mas algo parecia estranho em suas posturas. Eles não pareciam muito humanos. Quando cheguei perto, percebi que, de fato, não eram humanos. Suas caras eram feitas de um tecido branco rechonchudo, com botões no lugar dos olhos e linha preta compondo as sobrancelhas.

Cinco metros adiante, notei outra figura de tamanho humano empurrando um carrinho de mão em um terreno, depois outra puxando ervas daninhas, e mais cinco sentadas no banco de um ponto de ônibus.

Já me perguntava em que realidade alternativa eu tinha entrado quando notei outra figura adiante na beira da estrada. Essa também era extraordinariamente real, vestida com tênis preto, calça e blusa cinza, luvas e a cabeça escondida sob um chapéu. Voltei meus olhos para a estrada e parei abruptamente. Aquela figura deu um passo! E outro!

Estacionei e caminhei cautelosamente em direção à figura encapuzada, não muito certo de quem ou o que eu estava prestes a encontrar.

"Com licença", falei. A figura pareceu não ouvir. "Com licença", gritei, muito mais alto. A figura parou e lentamente se virou.

Uma face humana apareceu - calorosa, corada, enrugada e afável, com olhos minúsculos e brilhantes. "Sim?", a voz de uma mulher respondeu em japonês.

 

"Com licença, mas poderia fazer uma pergunta?"

"Sim, claro".

Andei em sua direção e apontei para as figuras no dois lados da estrada. "Você sabe quem criou estas criaturas maravilhosas?"

Ela me olhou atentamente por um momento. Depois disse com um sorriso: "Fui eu!"

 

As caras dos espantalhos são feitas de tecido branco, com botões para os olhos e linha preta para a sobrancelha — Foto: Don George

As caras dos espantalhos são feitas de tecido branco, com botões para os olhos e linha preta para a sobrancelha — Foto: Don George

 

Foi assim que conheci Ayano Tsukimi, a mestre dos espantalhos de Shikoku. O ano era 2013, e eu estava desbravando o quase impenetrável verdejante Vale de Iya, uma região remota no nordeste da ilha onde há apenas meio século estradas começaram a ser pavimentadas.

Minha mulher nascera e crescera em Shikoku, e meu cunhado comentara sobre o Vale de Iya, dizendo que era um lugar rústico com casas com telhado de palha, campos de cevada, pontes de ramos de videira e um modo de vida tradicional - mas ele não mencionara nada sobre figuras parecidas com humanos.

Ayano-san caiu na gargalhada com o espanto em meus olhos.

"Posso lhe perguntar sobre elas?", questionei.

"Claro!", ela respondeu. "Você gostaria de um pouco de chá?"

Passamos por dois meninos - quer dizer, figuras de meninos - brincando em uma bicicleta enferrujada, e uma mulher sentada em um galpão, de costas para a estrada. Ayano-san me conduziu por um caminho até sua humilde casa. Sentados ao lado da porta, havia meia dúzia de outras figuras: uma menina de uniforme escolar; uma mãe com um bebê no colo; e um senhor de terno segurando um cigarro.

 

Tirei meus sapatos e entrei em um cômodo revestido de tatame onde havia outras de suas criações, incluindo um casal vestido com kimonos tradicionais de casamento, ambos formalmente em pé no final da sala. Eu me senti como um personagem de Além da Imaginação, a série de ficção científica dos anos 1950 com elementos sobrenaturais e ocorrências inexplicáveis.

Ayano-san pediu que eu me sentasse no tatame ao lado da tradicional lareira de irori e, em seguida, foi preparar o chá. Ela voltou com uma pequena bandeja de verniz com duas xícaras e colocou uma delas cuidadosamente diante de mim.

Eu me curvei agradecendo, e ela me mirou com os olhos brilhando: "Eles são bastante incomuns, não são?"

"Sim, eles realmente são. Por favor, me fale sobre eles".

 

Ayano Tsukimi faz à mão cada espantalho, conhecido no Japão como kakashi — Foto: Don George

Ayano Tsukimi faz à mão cada espantalho, conhecido no Japão como kakashi — Foto: Don George

 

"Bem", ela começou. "Eu cresci aqui, mas fui para Osaka com meus pais quando estava no ensino médio. Eu vivi lá algum tempo, casei e tive filhos. A certa altura, meus pais voltaram para cá e então, quando minha mãe faleceu, vim cuidar de meu pai. Isso foi em 2002. Foi quando fiz o primeiro kakashi..."

Eu a interrompi: "Desculpe, mas que palavra é essa?"

"Kakashi. As figuras que os fazendeiros usam para espantar os pássaros de suas plantações ".

 

"Ah, kakashi!" Espantalhos.

"Fiz o primeiro kakashi para espantar os pássaros. Notei que eles estavam comendo as sementes naquele terreno lá", disse apontando para fora da porta. "E eu queria espantá-los".

"Fiz mais alguns com esse fim. Mas quando nossa vizinha faleceu, senti sua falta, porque costumávamos conversar todos os dias. Então eu fiz um espantalho que parecia com ela, para que eu pudesse continuar a cumprimentá-la todas as manhãs."

"Com o tempo", ela continuou, com um encolher de ombros e um suspiro, "outros moradores morreram. Eu comecei a fazer espantalhos para recordar (os agricultores que tinham morrido) e de alguma forma mantê-los vivos".

Ela fez uma pausa. Eu tomei um gole de chá e esperei. Ela apontou para uma figura sentada no tatame atrás de mim, uma mulher de aparência sábia com cabelos de fios grossos, grisalhos e trançados, vestida com um elegante quimono cinza. "Esta é minha mãe. Eu falo com ela todos os dias", disse ela. "Você gostaria de dar um passeio?"

 

Ayano Tsukimi: 'Eu comecei a fazer espantalhos para recordar (os agricultores que tinham morrido) e de alguma forma mantê-los vivos' — Foto: Don George

Ayano Tsukimi: 'Eu comecei a fazer espantalhos para recordar (os agricultores que tinham morrido) e de alguma forma mantê-los vivos' — Foto: Don George

 

Nós andamos por alguns minutos descendo a estrada em direção a um imponente edifício de concreto com dois andares atrás de um pátio sujo. "Isso costumava ser a escola primária", contou. "Mas com o passar dos anos, o número de alunos diminuiu até que, no ano passado, ela foi fechada. Agora todos os alunos da área estudam em uma escola a 30 minutos de ônibus".

Por BBC

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